terça-feira, 23 de agosto de 2011

Sobre as finalizações

Pesquisando sobre o tema da morte por ocasião da preparação de uma aula, eis que encontro um belo trecho do Stanley Keleman que me parece pertinente sob uma série de aspectos.

O primeiro deles é que a morte ocorre a cada instante. Sim, inclusive, agora, estamos morrendo e pouca gente pensa, fala e discute sobre o tema. Depois, no ocidente, ninguém aceita a morte de modo tão simples e tranquila. Há uma série de dispositivos de controle para que a morte seja inodora, insípida e, claro, invisível. Principalmente, nos hospitais.

Porém, a morte a que me refiro e na qual o texto ecoou em mim, diz mais respeito ao fim das coisas, ao fim das etapas, ao fim de um ciclo.

Reproduzo abaixo:

"Finalizações"

"Viradas são o término do velho e o começo do novo. Elas falam de modo como encerramos eventos. Elas falam do modo como proibimos ou participamos de finalizações. Tememos as finalizações, desejando deixar os eventos adormecidos.
(...) As finalizações nos colocam face a face com o desconhecido. As finalizações nos forçam a fazer novas relações ou, pelo menos, oferecem esta oportunidade. O luto é a consequência da partida e das finalizações. Pode-se dizer que o fim é a cornucópia de um momento decisivo. (...) Mas as pessoas evitam os fins. Os sentimentos são permanentes demais. Fins e finitude assustam as pessoas. Há o contrário, esquiva, retraimento e racionalização. Mantenha intacto o quarto do morto. (...) Mantenha seus sentimentos no mesmo nível invariável. Fuja da solidão. Este é um não-fim. Torne-se estóico, realista. Ou, então, trate o morto como se ele nunca tivesse existido e negue qualquer espaço que ele tenha ocupado. uma finitude abrupta. A primeira situação estende o passado para sempre; a segunda corta a conexão para sempre. Em um ou outro caso, nada de inesperado acontece. Isto inclui todas aquelas coisas com relação às quais nos sentimos culpados, que desejamos poder mudar, que desejamos que nunca tivessem acontecido, que nos fazem sentir desconforto, representam todas as potencialidades não realizadas de um contato melhor ou de uma plenitude emocional.
Situações em aberto devem ser finalizadas antes que possamos deixar a pessoa morta ou o self morto morrer. Isto é verdade mesmo quando se trata de uma pessoa fisicamente morta há muitos anos. Levamos esta pessoa dentro de nós, incapazes de romper com ela, não dispostos a aceitar o espaço vazio, não desejando completar o ciclo. É como se pudéssemos prolongar a nossa própria vida , ou avida da outra pessoa, recusando-nos a mudar a relação emocional.
A finalização é uma parte importante do processo de luto. Elaborar nossos fins permite-nos redefinir nossas relações, nos render ao que está morto, aceitar o que está vivo e estar no mundo mais plenamente para encarar a nova situação. Assim como o luto é um período de liberdade emocional, os fins apresentam as possibilidades de expressão para esta liberdade.
A incapacidade de fim surge quando falamos de nossas relações com familiares ou amigos de quem estamos separados pela distância da morte e de todas as coisas que queríamos dizer ou fazer. (...) Resistimos à despedida porque ela se parece demais com ser abandonado. A intimidade tem uma prioridade tão baixa para nós que, no final da vida, fomos íntimos de apenas umas poucas pessoas. Todo mundo pratica um pacto mútuo não-verbal de manter certa distância. Quando se atravessa esta linha, os sentimentos de ansiedade vêm à tona. Sentimos que estamos a um triz de perder o controle ou o poder.
Separar-se, finalizar, parece-se com uma perda similar de orientação ou controle. Vemo-nos como um pontinho num universo ilimitado. A intimidade pode ser usada como um porto seguro. Dizer adeus - perder uma intimidade - evoca a mesma resposta de desorientação, como uma invasão da intimidade vinda de fora. Temos medo de nos soltar, de nos deixar levar pelo espaço infinito, de nos deixar levar pela sociedade, de perder a conexão, de flutuar pelo cosmos social. O medo é uma perda de contato. Tememos não ser capazes de sermos íntimos numa nova situação.
O fim reforça a imagem de que a vida é uma conexão finita, linear. E, quebrar a conexão, perder o contato, é perder a vida. Com a partida, tememos chegar ao fim da nossa existência finita - há a perda de nós mesmos nesta vida, e é isso mesmo.
Mas, na verdade, os fins estabelecem novas relações. As pessoas temem os fins porque devem abdicar de seu poder no mundo. Mas o outro lado dos fins é um portal de novo poder e novas relações, de uma nova maneira de estar no mundo. Um fim estabelece uma relação entre nós mesmos e o desconhecido.
Tive um cliente nascido na Alemanha que cresceu na Europa. Depois da 2a. Guerra Mundial, ele procurou C.G. Jung para se tratar. Mas Jung lhe disse "Não posso atendê-lo, não estou mais atendendo pacientes novos, estou me preparando para morrer". Isto aconteceu cerca de um ano antes da morte de Jung. A partir dessa estória, reconheci que Jung conhecia bem sua vida. Ele precisava de tempo para deixar que seu processo chegasse ao seu final. Ele sabia como estar com sua vida. (...) ".


ps- Este final do texto pareceu-me um singelo agradecimento-reconhecimento do Keleman para com o Jung... Bonito ver isso.

Referência Bibliográfica - KELEMAN, S. Viver o seu morrer. São Paulo: Summus, 1997, p. 44-46.



terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ganesha

Até pouco tempo atrás, pensava que o deus elefante fosse uma espécie de Hermes grego ou Exu africano. E eis que Ganesha é uma...


"Figura venerada na Índia e muitas vezes reproduzida sob a forma de estatueta: cabeça de elefante com uma presa quebrada (ou as duas), uma grande tromba, um enorme corpo glutão, deformado, sentado num veículo minúsculo: um rato ou uma flor de lótus, muitas vezes com uma tiara na cabeça. Swami Siddheswarananda vê nesse símbolo a integralidade do pensamento hindu... Maya, ou a contradição da vida. Essa mistura de elefante e homem, essa assimetria, essa falta de harmonia, esse conjunto de grotesco e de solene, de peso e ligeireza, gordo ventre em cima de um rato, de uma flor, todas essas oposições representariam Maya, a manifestação. Filho de Shiva, Ganesha exprime o princípio da manifestação, com todas as suas aventuras no mundo movediço e ilógico das aparências ou das realidades efêmeras. Evoca todas as possibilidades da vida e todas as suas expressões, até as mais burlescas, no tempo e no espaço" (Vedanta). Algo tão arcano zero...

Assim, parece que o santo elefante personifica a própria experiência humana, aproximando-se dos gregos e baianos. Ganesha, nosso Exu e Mercúrio/ Hermes, são os deuses mais próximos dos homens.

Aproveitemos, entonces, para falar-lhes...

_ Salve Ganesha, Exu, Hermes e todas as suas forças! Que vós nos ouçam.




Referência bibliográfica:
Chevalier, J; Gheerbrant, A. Dicionário de Símbolos. 19a. edição. RJ: José Olympio. 2005.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Cadmo e Harmonia

"Existe um dar e um haver entre os deuses, uma contabilidade rigorosa, que se prolonga através dos tempos. Ártemis foi uma prestativa mercenária para Dionísio, quando se tratou de matar Ariadne. Mas um dia ela mesma, a orgulhosa virgem, teria necessidade, para surpresa sua, daquele deus promíscuo e impuro. Ártemis também seria obrigada a pedir a alguém que matasse em seu nome, deixando-lhe a escolha das armas. Era a vez de Dionísio" (Calasso, 1990, p.23).

O livro "As núpcias de Cadmo e Harmonia" é daquelas publicações em prosa que tratam de poesia. É a mitologia contada sob forma espiral. Cada estória se enovela por outra e muitas vezes não se pode saber o que aconteceu primeiro. O filho deu vida ao pai.

Livro antigo da estante. Livro querido da simbologia. A estória do nascimento do vinho com Ampelo e Dionísio, a luta entre Palas e Atena, as coroas de flores e todo o seu simbolismo, a Perséfone de quatro olhos...

O autor, o italiano Roberto Calasso, também escreveu Ka. Este, tratando somente da mitologia indiana... Comecei... 

Ambos da Cia. das Letras.