terça-feira, 23 de agosto de 2011

Sobre as finalizações

Pesquisando sobre o tema da morte por ocasião da preparação de uma aula, eis que encontro um belo trecho do Stanley Keleman que me parece pertinente sob uma série de aspectos.

O primeiro deles é que a morte ocorre a cada instante. Sim, inclusive, agora, estamos morrendo e pouca gente pensa, fala e discute sobre o tema. Depois, no ocidente, ninguém aceita a morte de modo tão simples e tranquila. Há uma série de dispositivos de controle para que a morte seja inodora, insípida e, claro, invisível. Principalmente, nos hospitais.

Porém, a morte a que me refiro e na qual o texto ecoou em mim, diz mais respeito ao fim das coisas, ao fim das etapas, ao fim de um ciclo.

Reproduzo abaixo:

"Finalizações"

"Viradas são o término do velho e o começo do novo. Elas falam de modo como encerramos eventos. Elas falam do modo como proibimos ou participamos de finalizações. Tememos as finalizações, desejando deixar os eventos adormecidos.
(...) As finalizações nos colocam face a face com o desconhecido. As finalizações nos forçam a fazer novas relações ou, pelo menos, oferecem esta oportunidade. O luto é a consequência da partida e das finalizações. Pode-se dizer que o fim é a cornucópia de um momento decisivo. (...) Mas as pessoas evitam os fins. Os sentimentos são permanentes demais. Fins e finitude assustam as pessoas. Há o contrário, esquiva, retraimento e racionalização. Mantenha intacto o quarto do morto. (...) Mantenha seus sentimentos no mesmo nível invariável. Fuja da solidão. Este é um não-fim. Torne-se estóico, realista. Ou, então, trate o morto como se ele nunca tivesse existido e negue qualquer espaço que ele tenha ocupado. uma finitude abrupta. A primeira situação estende o passado para sempre; a segunda corta a conexão para sempre. Em um ou outro caso, nada de inesperado acontece. Isto inclui todas aquelas coisas com relação às quais nos sentimos culpados, que desejamos poder mudar, que desejamos que nunca tivessem acontecido, que nos fazem sentir desconforto, representam todas as potencialidades não realizadas de um contato melhor ou de uma plenitude emocional.
Situações em aberto devem ser finalizadas antes que possamos deixar a pessoa morta ou o self morto morrer. Isto é verdade mesmo quando se trata de uma pessoa fisicamente morta há muitos anos. Levamos esta pessoa dentro de nós, incapazes de romper com ela, não dispostos a aceitar o espaço vazio, não desejando completar o ciclo. É como se pudéssemos prolongar a nossa própria vida , ou avida da outra pessoa, recusando-nos a mudar a relação emocional.
A finalização é uma parte importante do processo de luto. Elaborar nossos fins permite-nos redefinir nossas relações, nos render ao que está morto, aceitar o que está vivo e estar no mundo mais plenamente para encarar a nova situação. Assim como o luto é um período de liberdade emocional, os fins apresentam as possibilidades de expressão para esta liberdade.
A incapacidade de fim surge quando falamos de nossas relações com familiares ou amigos de quem estamos separados pela distância da morte e de todas as coisas que queríamos dizer ou fazer. (...) Resistimos à despedida porque ela se parece demais com ser abandonado. A intimidade tem uma prioridade tão baixa para nós que, no final da vida, fomos íntimos de apenas umas poucas pessoas. Todo mundo pratica um pacto mútuo não-verbal de manter certa distância. Quando se atravessa esta linha, os sentimentos de ansiedade vêm à tona. Sentimos que estamos a um triz de perder o controle ou o poder.
Separar-se, finalizar, parece-se com uma perda similar de orientação ou controle. Vemo-nos como um pontinho num universo ilimitado. A intimidade pode ser usada como um porto seguro. Dizer adeus - perder uma intimidade - evoca a mesma resposta de desorientação, como uma invasão da intimidade vinda de fora. Temos medo de nos soltar, de nos deixar levar pelo espaço infinito, de nos deixar levar pela sociedade, de perder a conexão, de flutuar pelo cosmos social. O medo é uma perda de contato. Tememos não ser capazes de sermos íntimos numa nova situação.
O fim reforça a imagem de que a vida é uma conexão finita, linear. E, quebrar a conexão, perder o contato, é perder a vida. Com a partida, tememos chegar ao fim da nossa existência finita - há a perda de nós mesmos nesta vida, e é isso mesmo.
Mas, na verdade, os fins estabelecem novas relações. As pessoas temem os fins porque devem abdicar de seu poder no mundo. Mas o outro lado dos fins é um portal de novo poder e novas relações, de uma nova maneira de estar no mundo. Um fim estabelece uma relação entre nós mesmos e o desconhecido.
Tive um cliente nascido na Alemanha que cresceu na Europa. Depois da 2a. Guerra Mundial, ele procurou C.G. Jung para se tratar. Mas Jung lhe disse "Não posso atendê-lo, não estou mais atendendo pacientes novos, estou me preparando para morrer". Isto aconteceu cerca de um ano antes da morte de Jung. A partir dessa estória, reconheci que Jung conhecia bem sua vida. Ele precisava de tempo para deixar que seu processo chegasse ao seu final. Ele sabia como estar com sua vida. (...) ".


ps- Este final do texto pareceu-me um singelo agradecimento-reconhecimento do Keleman para com o Jung... Bonito ver isso.

Referência Bibliográfica - KELEMAN, S. Viver o seu morrer. São Paulo: Summus, 1997, p. 44-46.



terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ganesha

Até pouco tempo atrás, pensava que o deus elefante fosse uma espécie de Hermes grego ou Exu africano. E eis que Ganesha é uma...


"Figura venerada na Índia e muitas vezes reproduzida sob a forma de estatueta: cabeça de elefante com uma presa quebrada (ou as duas), uma grande tromba, um enorme corpo glutão, deformado, sentado num veículo minúsculo: um rato ou uma flor de lótus, muitas vezes com uma tiara na cabeça. Swami Siddheswarananda vê nesse símbolo a integralidade do pensamento hindu... Maya, ou a contradição da vida. Essa mistura de elefante e homem, essa assimetria, essa falta de harmonia, esse conjunto de grotesco e de solene, de peso e ligeireza, gordo ventre em cima de um rato, de uma flor, todas essas oposições representariam Maya, a manifestação. Filho de Shiva, Ganesha exprime o princípio da manifestação, com todas as suas aventuras no mundo movediço e ilógico das aparências ou das realidades efêmeras. Evoca todas as possibilidades da vida e todas as suas expressões, até as mais burlescas, no tempo e no espaço" (Vedanta). Algo tão arcano zero...

Assim, parece que o santo elefante personifica a própria experiência humana, aproximando-se dos gregos e baianos. Ganesha, nosso Exu e Mercúrio/ Hermes, são os deuses mais próximos dos homens.

Aproveitemos, entonces, para falar-lhes...

_ Salve Ganesha, Exu, Hermes e todas as suas forças! Que vós nos ouçam.




Referência bibliográfica:
Chevalier, J; Gheerbrant, A. Dicionário de Símbolos. 19a. edição. RJ: José Olympio. 2005.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Cadmo e Harmonia

"Existe um dar e um haver entre os deuses, uma contabilidade rigorosa, que se prolonga através dos tempos. Ártemis foi uma prestativa mercenária para Dionísio, quando se tratou de matar Ariadne. Mas um dia ela mesma, a orgulhosa virgem, teria necessidade, para surpresa sua, daquele deus promíscuo e impuro. Ártemis também seria obrigada a pedir a alguém que matasse em seu nome, deixando-lhe a escolha das armas. Era a vez de Dionísio" (Calasso, 1990, p.23).

O livro "As núpcias de Cadmo e Harmonia" é daquelas publicações em prosa que tratam de poesia. É a mitologia contada sob forma espiral. Cada estória se enovela por outra e muitas vezes não se pode saber o que aconteceu primeiro. O filho deu vida ao pai.

Livro antigo da estante. Livro querido da simbologia. A estória do nascimento do vinho com Ampelo e Dionísio, a luta entre Palas e Atena, as coroas de flores e todo o seu simbolismo, a Perséfone de quatro olhos...

O autor, o italiano Roberto Calasso, também escreveu Ka. Este, tratando somente da mitologia indiana... Comecei... 

Ambos da Cia. das Letras.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Corpo e yoga: relações


Se “somente os pensamentos que nos ocorrem ao caminharmos têm valor” como nos indica Nietzsche (NIETZSCHE:1888 apud NOGUEIRA: 2008), como podemos classificar a importância que o corpo nos oferece no campo cognitivo, seja qual for o aspecto a ser elucidado? Como veículo, o corpo, pode ser um instrumento a favor do desenvolvimento do individuo?

Do latim “corpus”, o vocábulo “corpo” significa genericamente tudo aquilo que ocupa espaço e constitui unidade orgânica ou inorgânica. Hoje, é utilizado em diversos contextos da vida moderna: desde a parte essencial de certos objetos a significado de crescimento como, por exemplo, “o trabalho toma corpo”.

Tomamos “corpo” e “corporeidade” em seus aspectos biológicos que compreendem tanto o físico quanto o psíquico. Isto é, corpo físico não como sinônimo de corpo anatomofisiológico (COSTA, 2004, p.56), mas a corporeidade física que compreende o experienciado e produzido pelo e para o corpo.

Percepção corporal, posturas corporais, terapias corporais são algumas das atividades e/ou técnicas que ao longo das últimas décadas têm ganhado destaque como forma de cuidado para a obtenção de equilibro, melhorias na saúde e uma boa qualidade de vida.

A prática de yoga, técnica milenar oriunda da índia, é uma dessas ações de contato e cuidado com o corpo. Restrita a pequenos grupos no passado, hoje, o yoga é motivo de organização de eventos para multidões a foco de veículos de comunicação, além de ser utilizado como atividade corporal e disciplinar em instituições totais como prisões e hospitais.

Ao pensarmos em yoga, uma das primeiras imagens que nos vêm é uma pessoa realizando exercícios físicos quase que em uma espécie de alongamento. Porém, muito mais que uma prática com o corpo, o yoga tem como base toda uma ligação com a aquietação da mente, tornando seu propósito muito mais mental e psicológico que físico.

Um dos textos mais antigos do Samkhya, sistema filosófico do qual provém o Yoga, afirma-se que a vida humana é repleta de dor e sofrimento e que removê-los deve ser o foco de nossas atenções. Tanto para o Samkhya como para o Yoga, para que se possa viver em paz e equilíbrio é necessário que se controle as alterações da mente, ou seja, os pensamentos.

De origem indiana, yoga é uma palavra da língua sânscrita, língua clássica criada há cerca de 1500 a.C. Yoga é oriunda da raiz “yug” que significa “ligar”, “manter unido”, “atrelar”, ‘unido”, “compartilhamento”. Inclusive foi a raiz sânscrita que originou o termo latino jungere (libertar-se do jugo). Portanto, yoga é, para alguns mestres, a ligação do microcosmo (o ser humano) ao macrocosmo.

Mircea Eliade, estudioso romeno dos mitos da criação às formas de transcendência e experiência místicas, informa que “o vocábulo yoga serve em geral para designar toda técnica de ascese e todo método de meditação”. (ELIADE, 1996, p. 20). Porém, vale ressaltar que s a origem do yoga é anterior à nomeação da técnica.

Nas ruínas de Mohenjo Daro, um sítio arqueológico de cerca de 4 mil anos no norte do subcontinente indiano, atual Paquistão, foram encontradas figuras humanas em posturas yóguicas. Com isso, pode-se entender que a prática da meditação e/ou do yoga já fizesse parte do cotidiano dos seres ali presentes.

A bibliografia presente até o momento nos informa que, de qualquer modo, o yoga sofreu modificações no decorrer dos períodos indianos: desde o pré-védico até o período moderno, passando pelos Vedas, pelas Upanishads e, pelos Puranas, entre outros. Os Vedas, as Upanishades e os Puranas são livros clássicos e sagrados das filosofias milenares praticadas na Índia antiga.

De qualquer modo, o conhecimento que possuímos hoje sobre o que é yoga, ásana (posturas), yamas (refreamentos) e nyamas (auto-observações), pranayama (técnica respiratória), entre tantos outros termos usuais, devemos a um médico, filósofo e gramático chamado Patanjali.

Acredita-se que, entre o século 1 a.C e 1. d.C, Patanjali tenha sido o primeiro sistematizador do que é o yoga, qual seu objetivo, seus princípios éticos, seus requisitos e suas técnicas, ou seja, ele foi quem organizou e escreveu em forma de sutras – uma espécie de fórmula, onde poucas palavras condensam um enorme conhecimento - todas as informações que eram passadas de mestre para discípulo na forma oral. Segundo ele, os dois primeiros sutras oferecem ao iniciante o que trata o yoga:

Atha yoganusasanam.

Yogas citta-vrtti-nirodhah.

Tradução:

“(Será feita ) agora, uma exposição do Yoga.

Yoga é a inibição das modificações da mente.” (TAIMNI, 2004, p.17)

Para entender melhor o que são as tais modificações da mente, podemos utilizar como metáfora um oceano. Sem vento, não há ondulações. Porém, se uma gota, ou folha, ou um animal se mover sob suas águas, essas ficarão levemente onduladas ou bastante agitadas, conforme a força desse objeto. Assim é nossa mente. E a prática do yoga tem como objetivo principal eliminar as ondulações, denominadas citta-vrtii, da mente humana.

O arcabouço ético e moral da prática do yoga está contida nos ensinamentos passados por Patanjali em seus Yoga-Sutras e denominam-se yamas. Para ele, antes que o discípulo pudesse ir para os ásanas (posturas), esse precisava ter os princípios éticos-norteadores dentro de si. Os yamas são o primeiro ramo dentro do ashtanga yoga (oito membros (anga = membro) do yoga) de Patanjali. E sua vivência é fundamental para as posteriores etapas do yoga.

São cinco os yamas:

· não-violência (ahimsa) - A não-violência, tão pregada por Gandhi, começa em si mesmo. Cultivar a não-violência em si possibilita que não se use da violência em relação ao outro e ao mundo;

· veracidade (satya) – Ser verdadeiro ao princípios básicos do ser e incluir a verdade em todas as suas manifestações;

· castidade ou controle dos impulsos (brahmacharia) - Conservar a energia dentro de si para propósitos de auto-conhecimento, ou seja, canalizar a energia e utilizá-la para a obtenção de melhores benefícios. Aqui, cabe dizer que o yoga não é contra o uso da energia para fins sexuais, mas que, a energia deve ser utilizada beneficamente e com fins de auto-aprimoramento até mesmo espiritual;

· não-roubar (asteya) – Cultivar a integridade, obtendo e usando somente o que lhe é preciso, é não roubar do outro nem da natureza;

· não-possessão (aparigraha) - Não cobiçar e não apegar-se é um modo para que tudo exista de modo equilibrado e flua, principalmente, as mudanças. O planeta Terra existe há milhares de anos e nós, seres humanos, há apenas uma centena de mil anos.

Porém, Patanjali ainda coloca como segundo ramo dentro do ashtanga, os nyamas, que são observações em si mesmo para se levar em conta no cotidiano da existência.

São eles:

· Pureza (sauca) – A pureza do corpo físico, psíquico e emocional por meio dos pensamentos e ações práticas;

· Contentamento (santosha) – A alegria que precisa ser exercitada para que haja um verdadeiro equilíbrio, só é adquirida como resultado de uma prolongada auto-disciplina;

· Austeridade (tapas) – O termo tapas, segundo Taimni, é muito abrangente, mas em linhas gerais, pode-se definir como meio de autodisciplina e purificação através de exercícios e/ou práticas corporais e psíquicas para um auto-aprimoramento do aspirante;

· Estudo e reflexão (svadhyaya) – O conhecimento do que é yoga por meio, primeiramente, dos ensinamentos e livros, para, posteriormente “passar pelos progressivos estágios de reflexão, meditação, tapas,etc, até que o sadhaka (aspirante ao samadhi) esteja apto a extrair todo o conhecimento ou devoção do interior, por seus próprios esforços” (TAIMNI, 2004, p.182), é o conceito de svadhyaya;

· Entrega a deus (Isvara-pranidhana) – A auto-entrega a uma força maior que pode ser denominada Deus ou à uma macro-consciência. “Essa é a idéia sobre a qual repousa toda a filosofia do yoga, sendo que todos os sistemas do yoga visam à destruição dessa consciência do “eu”, direta ou indiretamente. (...) A prática de Isvara-pranidhana é um dos meios”. (Idem, p.182)

A base ética e a prática das observações citadas nos yamas e nyamas demonstram as “preocupações” filosóficas e morais com as quais o yoga está envolvido e que perpassam e preparam todos os outros seis ramos do ashtanga yoga de Patanjali, que inclui os ásanas (posturas), pranayamas (envolve a respiração), pratyahara (desligamento dos sentidos), dharana (concentração), dhyana (meditação) e samadhi (iluminação).

Swami Kuvalayananda explica que os yamas e nyamas “constituem dez princípios de conduta que, se seguidos fielmente, darão suprema paz mental para o praticante da yoga. (...) Em resumo, ele será capaz de assegurar saúde perfeita para a sua mente” (KUVALAYANANDA, 2005, p. 49)

Referente aos ásanas, os mitos nos contam que foi Shiva, o deus transformador – para alguns, destruidor - da tríade hindu composta também por Brahma e Vishnu, quem ensinou à sua esposa Parvati o que é o Hatha-yoga. Conta-se que, o deus teria dito que existem tantos ásanas como existem espécies de animais. Seriam oitenta e quatro milhões.

As posturas de yoga são comumente denominadas ásanas que, em sua origem sânscrita, quer dizer “assento”. A primeira vez que o vocábulo “ásana” aparece encontra-se no Svestasvatara Upanishad. Porém, sua prática é anterior, devido às imagens encontradas em Mohenjo-Daro e Harapa.

Alguns compêndios de yoga como o Hatha Yoga Pradipika e o Gheranda Samhita informam quinze e trinta e duas ásanas, respectivamente (SOUTO, 2003). São apenas alguns números de posturas para atingir o equilíbrio psicofísico com o objetivo final de samadhi, ou seja, meditação profunda e contemplativa.

O assentar-se um uma posição, seja ela qual for, exige dois itens básicos ainda, segundo Patanjali: conforto e estabilidade.

Sem essas duas características, não há yoga nem prática. Se o praticante está desconfortável ou força uma determinada postura, ele está se autoviolentando e foge do primeiro yama que é ahimsa. Violência essa que não pode ocorrer em nenhum aspecto, quanto menos para si mesmo. De acordo com Alicia Souto, “o ásana é um processo que começa no nível físico e finaliza com a completa estabilidade do corpo e da mente” (2003, p. 25).

A prática dos ásanas inclui inúmeros benefícios físicos, mentais e psicológicos, desde melhor irrigação do sangue em todo o corpo, arejamento do ar no organismo até relaxamento dos membros e um estado de calma e paz mental.

Pesquisas com o intuito de comprovar os inúmeros benefícios da prática de yoga têm sido realizadas em todo o mundo. O Instituto de Kayvaliadhama, em Lonavla, na Índia, desde sua fundação por Swami Kuvalayananda, pioneiro na pesquisa científica do yoga, tem sido um dos grandes centros de referência em dados pormenorizados do que os ásanas efetivamente podem fazer no tratamento de doenças físicas e psíquicas. Tanto é seu prestígio, que além de possuírem toda uma infra-estrutura laboratorial para o respectivo aproveitamento e desenvolvimento, o próprio governo indiano tem investido no Instituto a fim de que mais pesquisas possam ser realizadas e divulgadas em todo mundo.

A literatura também é vasta sobre as inúmeras benesses que a prática proporciona em todos os sistemas orgânicos. Como o próprio Swami questiona e responde em seu livro Ásanas “podem as ásanas manter o mecanismo nervoso de todo o corpo em condições de eficiência? Sim, podem. Sirshasana[1] (postura de cabeça para baixo) e Viparita-Karani, enviando um suprimento mais rico de sangue para o encéfalo, asseguram saúde a ele e aos nervos cranianos, que se relacionam com os vários órgãos dos sentidos. Todas as posições yóguicas são excelentes exercícios para a espinha” (KUVALAYANANDA, 2005, p. 157). Conforme a postura, um órgão – ou mais de um – é massageado, além dos tecidos que o circundam.

É válido lembrar que, a prática de ásanas influencia também no estado emocional do individuo. Assim como é sabido que as emoções provocam doenças, o trabalho com o corpo também pode evitá-las. Kuvalayananda informa que “o efeito das emoções sobre as supra-renais aumenta a pressão arterial, favorecendo o desenvolvimento da arteriosclerose e de outras doenças do sistema circulatório” (2005, p.47). A depressão mental também afeta a tireóide e pode causar o mixedema, um tipo de edema que tem como característica ser duro e com aspectos de pele opaca. Estes são apenas dois pequenos exemplos do que pode acontecer quando não se dá a devida atenção às emoções. Assim como “é um fato científico admitido que os músculos podem manter sua força e elasticidade se submetidos a exercícios de extensão e contração: Bhujangasana (postura da cobra), salabhasana (postura do gafanhoto) e dhanurasana (postura do arco) são ótimos exercícios de extensão para os músculos posteriores e a descarga de endorfina proporcionada pelas posturas oferece à mente um estado de calma e paz, além de relaxamento físico (2005, p. 150).

Ao trabalharmos determinadas posturas durante um período de tempo e sob orientação de um instrutor, há uma pressão e descompressão de certas glândulas que, por conta da atividade, podem voltar ao seu ritmo normal de funcionamento, aliviando sintomas e melhorando a qualidade de vida da pessoa.

De acordo com Gharote, que foi instrutor inclusive de Gandhi, em relação às crianças, que geralmente são receptivas aos ásanas, as posturas podem auxiliar na melhora do bem-estar e comportamento delas. “À medida que as crianças crescem, a prática de ásanas torna-se útil no desenvolvimento de capacidades físicas e emocionais. Uma das observações feitas é que as crianças têm a memória melhorada por meio da prática de ásanas” (GHAROTE, 2000, p.48).

Com a entrada na adolescência e as mudanças biopsicossociais, os adolescentes são afetados pelos humores e tensões emocionais. A prática de yoga, segundo o pesquisador indiano, pode auxiliar na prevenção destes “fluxos emocionais, não permitindo que fujam ao controle e, também, ajudando o corpo a desenvolver-se” (2000, p.48).

Por meio das posturas, pode-se corrigir e alinhar a coluna vertebral, regular e controlar as energias orgânicas, estabilizar a pulsação cardíaca, melhorar a circulação e as trocas respiratórias, além de desenvolver potenciais mentais, fortalecendo a vontade, a disciplina e o caráter.

É interessante ressaltar que, há ásanas que são facilitadoras de um estado mais meditativo e de relaxamento de todo o corpo e, há outras que trazem mais vigor e estado vivo de atenção. Mas qualquer ásana a ser praticada ou instruída por um mestre ou professor conhecedor da técnica fornecerá ao praticante um estado de maior autoconhecimento de seu próprio corpo, de suas emoções e do funcionamento de sua mente. Sendo o objetivo do yoga a supressão dos turbilhões da mente, é importante que o praticante possa perceber dentro de si os movimentos de agitação e calmaria, um dos primeiros benefícios da prática, para que possa evoluir gradativamente ao encontro do samadhi, ou melhor, de um estado de paz consigo próprio.

Gharote, em seu livro “Técnicas de Yoga” observa que, o yoga hoje está sendo mais conhecido como um sistema de disciplina prática. “A aplicação de técnicas do yoga é considerada benéfica para a saúde e cura de certas doenças, para gerenciamento de estresse e para melhorar a eficiência geral de indivíduos em campos diversos. O yoga está sendo utilizado desde implicações pessoais às sociais e educacionais como um todo” (GHAROTE, 2000, p.16).

O cuidado que o yoga propõe é um cuidado de si que se reflete no individuo em suas relações interpessoais e sociais. Por ser uma ciência psicofísica, o yoga tem seu domínio no corpo por meio da prática da atividade física.

Ao tratarmos de desenvolvimento, estamos tratando da aquisição de funções e, ao considerarmos que o yoga oferece um caminho para o desenvolvimento emocional, precisamos observar que “os processos de maturação formam a base do desenvolvimento da criança, tanto em psicologia quanto em anatomia e fisiologia. Não obstante, quanto ao desenvolvimento emocional, é claro que certas condições externas são necessárias para que os potenciais de maturação se concretizem” (WINNICOTT, p.106).

É por isso que questões e pesquisas a respeito do controle que o yoga proporciona aos praticantes são essenciais. Se pensarmos em práticas yóguicas junto a adolescentes é imprescindível questionarmos se o controle de si que o yoga propõe oferece uma melhoria em sua qualidade de vida e em seu desenvolvimento físico, psíquico, emocional e educacional e se este controle de si facilita a apreensão da realidade. Questionamentos sobre as práticas sociais também são precisas quando pensamos se a prática do yoga pode facilitar a convivência com os outros jovens de mesma idade e da sua relação com o mundo perceptível aos seus sentidos.

Quanto à corporeidade em seu sentido lato, faz-se necessário responder se o yoga possibilita uma transformação de sentido que o corpo tem para si e se há mudanças perceptíveis de comportamento antes e depois da prática de yoga realizada pelo jovem. O fator tempo é substancial na continuidade de um padrão “adequado” de comportamento? A percepção corporal é alterada por meio dos ásanas?

Se é o corpo e suas relações internas, precisas e metabólicas que nos dão a materialidade para nos constituirmos seres viventes, é coerente pensarmos que tudo aquilo que afeta direta ou indiretamente nosso organismo fará diferença – positiva ou negativa – no modo como ele – e nossa mente, por conseqüência- apreende a realidade. [2]

Como Judith Nogueira esclarece em seu livro “Do movimento ao verbo’, “todos os sentidos e sensações corporais, conscientes ou não, contribuem para o fenômeno neural que chamamos cognição. Assim, o raciocínio não provém unicamente de associações de informações verbais, visuais ou auditivas, mas é produto do estado corporal ou somático do individuo, incluindo nessa denominação (estado somático) todos os fenômenos fisiológicos e sensações provenientes das vísceras, dos músculos esqueléticos, dos ossos, da pele e dos demais órgãos dos sentidos” (NOGUEIRA, 2008, p. 27).

Ao que tudo indica, o yoga, como instrumento corporal e mental, tem grande potencial para ser um aliado no desenvolvimento biopsicossocial tanto do individuo em formação (crianças e adolescentes) como em adultos que almejam uma vida com melhor qualidade e bem-estar.

Referências Bibliográficas:

COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

ELIADE, M. Yoga. Imortalidade. Liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 33ª. Edição. São Paulo: Ed. Vozes, 2007.

GHAROTE, M.L. Técnicas de Yoga. 2.ed. São Paulo: Phorte. 2007.

GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva.1974.

KUVALAYANANDA, Swami. Ásanas (tradução: Ignez Novaes Romeu). São Paulo: Editora Phorte, 2005.

NOGUEIRA, Judith. Do movimento ao verbo: desenvolvimento cognitivo e ação corporal. São Paulo: Annablume, 2008.

SOUTO, Alicia. El yoga de la Purificación (traducción y comentario del GHERANDA SAMHITA), Buenos Aires: Instituto de Yoga de Lonavla, 2003.

TAIMNI, I. K. A ciência do Yoga. (Comentários sobre os Yoga-Sutras de Patanjali à luz do Pensamento Moderno. 3.ed. Brasília: Editora Teosófica. 2004



[1] As posturas aqui citadas estão grafadas em seu termo original e traduzidas conforme os livros pesquisados.

[2] Não podemos deixar de pensar se o yoga também não poderia ser um facilitador na docilização dos corpos. O termos “corpos dóceis” é cunhado por Michel Foucault em seu livro ‘Vigiar e Punir” onde o autor esmiúça a origem das prisões e o controle dos corpos.

Testar ou não testar: eis a questão! Uma análise crítica sobre a mensuração da inteligência

“Os fatos estão todos aí, objetivos e independentes de nós. Mas cabe a nós fazer com que se tornem fatos históricos, mediante a identificação das relações que os definem, seja pela observação de suas relações de causa e efeito, isto é, sua história, seja pela constatação da ordem segundo a qual eles se organizam para formar um sistema, um novo sistema temporal, ou melhor, um novo momento do modo de produção antigo, um modo de produção novo, ou a transição entre os dois. Sem relação não há “fatos”[1]. É por sua existência histórica, assim definida, no interior de uma estrutura social que se reconhecem as categorias da realidade e as categorias de análise. Já não estaremos, então, correndo o risco de confundir o presente com aquilo que não mais o é.” ( Milton Santos, 2004, p.15)

Desde que a filosofia surgiu no horizonte do pensamento humano, pergunta-se como se apreende o conhecimento e como se dá esse processo de apreensão. Dúvidas, questionamentos, técnicas de investigação da mente foram os pontapés iniciais de nossos antepassados para que hoje, ainda, continuássemos a investigar se é possível (ou não) ter um modelo ideal de como se constitui o ser humano, em termos de conhecimento adquirido ou inato.

Grosso modo, a essa capacidade de processamento e aprendizado de novas informações de forma reflexiva com as quais se pode resolver problemas dá-se o nome de inteligência. Faculdade esta que nos possibilita manuseá-la – e metainlectualizá-la - com vistas a compreendê-la e a eliminar as dúvidas que ainda persistem há séculos.

Nos últimos trezentos anos, as interrogativas a respeito da racionalidade (e por quê não dizer também da inteligência?) cresceram, sendo que no final do século XIX, inicio do século XX com o advento e formalização da psicologia, critérios formais de averiguação foram sendo criados para determinar se a inteligência seria também um conjunto de funções inatas ou adquiridas.

Com o intuito de aferir a capacidade intelectual dos indivíduos, pesquisas e testes de medição da inteligência foram sendo modelados concomitantemente à investigação cientifica e conceitual das disciplinas “psicologia” e “pedagogia”.

O primeiro teste formal de inteligência foi criado em 1905 por Alfred Binet e Theodore Simon. Predominantemente verbal, o teste visa(va) obter o Quoficiente de Inteligência – QI- e foi elaborado de modo a obedecer uma sequência lógica de dificuldades a fim de descobrir a idade mental do individuo. Francis Galton, Cyril Lodovic Burt e Hans Jurgen Eysenck são alguns dos pesquisadores dos mais comentados quando se trata de pesquisar o histórico, os porquês e a qualidade dos exames de medição da capacidade intelectual do ser humano.

É nesse caldeirão efervescente de novas possibilidades cientificas que, estudiosos brasileiros começam a procurar meios de entender como propiciar, favorecer e melhorar o desenvolvimento da aprendizagem e, consequentemente, da estrutura pedagógica na área da educação, principalmente, junto às crianças.

Professor, pesquisador e criador dos Testes ABC, Manoel Bergström Lourenço Filho, mais conhecido pelos seus dois últimos sobrenomes, foi um dos intelectuais com carreira ascendente em nosso país que mais contribuíram significativamente para a disseminação de testes assim como contribuições à chamada psicologia experimental.

Lourenço Filho fazia contraponto às idéias antropométricas, principalmente àquelas de viés lombrosiano. Para ele, “a medida psicológica devia ser rapidamente e em condições simples, por meio de testes que permitissem a verificação do valor individual, para posterior classificação dos escolares” (Monarcha, 2001, p.13).

O contexto sócio-histórico da qual Lourenço Filho fazia parte era propício aos estudos da educação e sua conseqüente racionalização: havia pouco tempo que a República fora promulgada e a nova ordem político-social previa educação a todos. “Tomados pela paixão de uma sociedade reconduzida ao seu começo primordial, esses sujeitos históricos idealizam a instrução como condição prévia para o bom funcionamento das instituições republicanas, fundadoras de um corpo político duradouro e de um pacto social estável” (Monarcha, 2006, p.123).

Porém, que educação era a que os republicanos mencionavam? Como dar escola a todos se, de fato, as crianças não são tão iguais quanto se pensava que fossem? Que modelo escolar era preciso para cumprir o ideal republicano? É em face desses questionamentos que, Lourenço Filho irá desenvolver suas pesquisas.

É a partir de meados da década de 20 que os testes de medição começam a ser utilizados em larga escala em muitos Estados brasileiros e publicações de intelectuais surgem. Bahia, Pernambuco, Distrito Federal, Minas Gerais, Ceará, São Paulo assumem laboratórios de psicologia.

Com foco no melhoramento do diagnóstico e predição, utilizando questionários com perguntas breves e objetivas, o “movimento dos testes” (idem, p.15) propunha-se ser um método universal que pudesse ter a qualidade e a característica de ser utilizado em larga escala para os mais diversos fins. Como iremos observar, além do esclarecimento do rendimento individual e da realidade escolar, os testes de medição de inteligência e rendimento também serão aplicados ao trabalho, como método de controle social.

Sob essa perspectiva de se organizar a sociedade de forma eficaz – diga-se de passagem, a eficiência também fazia parte do ideal republicano -, devido ao crescimento das zonas urbanas e do crescimento, Lourenço Filho junto a Roberto Mange iniciam um trabalho de difusão da psicotecnia, ou seja, uma psicologia aplicada que favorecesse a seleção, orientação e formação profissional de trabalhadores brasileiros estáveis (idem, p.21).

Segundo o próprio Lourenço Filho, o teste “antes de tudo, pretende é substituir a apreciação subjetiva, variável (...) por uma avaliação objetiva, constante e inequívoca. O teste pretende ser, realmente, uma medida. Medir pressupõe um padrão, uma grandeza conhecida, certa e determinada, invariável no tempo e no espaço, que se aplica sobre grandezas desconhecidas” (Lourenço Filho, 1931, p.255 apud Monarcha, 2001, p.28).

Importante salientar que a república estava impregnada do cientificismo e de temas como raça, sanitarismo e higiene. “Mensurar as capacidades, sanear e dar argumentos científicos às hierarquizações da sociedade eram gestos intelectuais conexos diante de uma República permanentemente atacada como incompleta e considerada abaixo das expectativas de todos os republicanos” (Freitas, 2002, p.352). Ou como menciona Monarcha, “naquele momento histórico, sob o influxo triunfante da razão psicotécnica, parcelas crescentes de especialistas colocaram para si o problema da desigualdade humana e da equidade social, explicando ambas por meio da medida, considerada um instrumento universal e não-arbitrário” (Monarcha, 2005, p.140).

Portanto, a racionalização da educação exigia, por sua vez, uma economia pedagógica eficiente. Ou seja, esse novo modus operandi onde professores estão na escola (no mesmo local), o ensino é simultâneo aos alunos, a idade e a seriação tem correspondência e há um método específico de disseminar o conhecimento, para ser efetivo, necessita a contraparte do aluno, isto é, se esse individuo é capaz ou não de aprender. A economia escolar exigia uma homogeneidade discente para o progresso da aprendizagem.

E é aqui que, os Testes ABC criados por Lourenço Filho obterão o reconhecimento por tentarem resolver a lacuna-e-dilema entre maturidade, capacidade e oferecimento de conhecimento e de ciência.

Os Testes ABC eram constituídos por oito provas que objetivavam perceber a coordenação visivo-motora, memória imediata, memória motora, memória auditiva, memória lógica, pronunciação, atenção e fatigabilidade. Por meio de seus resultados, Lourenço Filho e seus colaboradores podiam quantificar e, também, qualificar os alunos em fortes, médios e fracos.

Monarcha apresenta que os “Testes ABC visavam à organização eficiente, mediante analise psicológica, com a conseqüente eliminação das classes heterogêneas formada por uma variedade de tipos mentais” (idem, p.31). Ou seja, essa mensuração dirigia-se à produtividade no ensino e ganha mais força quando a educação massiva se faz presente e o trabalho nas zonas urbanas cresce. A psicologia objetiva é legitimada como forma de organização e controle social.

Digno de nota é informar que, Lourenço Filho na condição de diretor-geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo, em 1930, cria seções especializadas com foco na sistematização pedagógica como a inspeção médica escolar, biblioteca central, museu da criança, inspeção escolar e serviço de assistência técnica. Todos esses marcadores institucionais em conjunto com os Testes ABC começam a ser utilizados em larga escala, tornando-se uma prática corrente e institucional.

Essa nova estrutura pedagógica fará com que a aferição como meio de situar o aluno no seu momento de aprendizado torne-se referência e reverbere ainda hoje nas praticas de aprendizagem e de ensino. Os vestibulares para ingresso nas universidades é uma herança que persiste.

Por conta disso e, contrastando com o que a psicologia objetiva apregoava, Dante Moreira Leite, filósofo e cientista social, faz um minucioso levantamento das ditas “diferenças” que acometem os seres humanos, desmistificando os resultados provenientes de testes que levam em consideração a raça, o grupo, as deficiências, os normais e anormais e até mesmo os chamados bem-dotados (super dotados?). Seu método de analise toma como ponto de partida os aspectos do tempo social da diferença, o entorno político-social, sua respectiva influência[2], considerando que se existem deficiências biológicas, ainda assim os testes de medição poderiam predizer o futuro do desenvolvimento do individuo?

Com o advento e formalização desse novo padrão de abordagem frente às diferenças individuais na aprendizagem lançado no passado por Lourenço Filho, Leite investiga até que ponto os testes de medição de inteligência podem de fato ofertar subsídios que contribuam para o desenvolvimento do individuo em seu processo de apreensão do conhecimento. Leite apresenta a psicologia diferencial como a psicologia que “procura verificar e explicar as diferenças psicológicas entre indivíduos e grupos” (Leite, 2008, p.15). Psicologia essa se utilizará de testes para a observação das respectivas diferenças entre pessoas e grupos, por exemplo.

O cientista social aprofunda, com uma linguagem clara e acessível, o cuidado minucioso de situar a diferença em si e a sua circunstância, o seu respectivo momento histórico.

Para ele, a observação dessas diferenças, a quase naturalidade com que essas se incorporam aos preconceitos tornando-se um estigma, que cada vez é “mais aplicado à própria desgraça” (Goffman, 2008, p.11), é um dos desastres que uma diferença ao se corporificar, vai se representando nos interstícios da sociedade. É a possibilidade de “esmiuçamento” e atenção às diferenças que poderiam ser consideradas naturais o foco dos estudos de Leite e, que, se oporá à chamada psicologia objetiva de Lourenço Filho e, consequentemente, da psicologia diferencial que baseia sua atuação em testes.

A psicologia diferencial e/ou a psicologia objetiva fazem da diferença seu foco. A questão é que esta diferenciação não responde aos problemas e dilemas de desenvolvimento que nos perpassam enquanto cidadãos, estudantes, filhos, pais ou mãe, isto, seja lá qual for o papel social desempenhado.

Pois, a exacerbação dos ditames diferenciais foi o que levou pessoas e até mesmo pesquisadores darem crédito à eugenia[3] e, até mesmo que se pudesse pensar que determinado grupo está destinado a dominar e, outro, a ser dominado como foi o caso dos judeus perseguidos com a ascensão do nazismo, por exemplo.

No caso da medição da inteligência e as diferenças entre as pessoas há questões muito bem observadas por Leite: a noção de rapidez (será que quanto mais rápido é mais inteligente?); a subjetividade do professor na avaliação do aluno e as dificuldades para aferirem o conhecimento; os problemas-chave das provas dissertativas ou objetivas como forma de avaliação; os resultados do vestibular e a relação com a escolha e sucesso na carreira – diga-se de passagem, o autor aprofunda muito bem a questão do êxito na vida prática, a correlação mediana entre notas na escola e testes de inteligência, a escolha vocacional e o problema da orientação na identificação dos interesses do individuo -; a normalidade; as construções históricas sobre as doenças; a superação da deficiência e a participação ativa (ou não) do meio ambiente; a pseudo eficácia da medição da criatividade; o papel da cultura nos grupos e, até os (pré)conceitos generalistas referentes a gênero e idade como alguns dos itens comentados no decorrer do seu estudo.

Referente ao teste de inteligência, Leite problematiza, discernindo a veracidade do resultado que o teste pode oferecer.

A primeira contenda com a qual este autor se depara é que seja lá qual for o resultado do teste, o produto dessa operação só poderá ser utilizado junto ao grupo com a qual ele foi obtido. Não há como o resultado do teste ou do ser exame poder ser realocado em uma população diferente da qual ele foi empregado anteriormente. As pessoas vivem em circunstâncias de vida diversas e, sendo assim, o teste não tem um resultado universal, como se previa.

Dizer que um resultado é universal é ainda olhar a ciência sob o aspecto do positivismo. É continuar olhando os dados com fins a se encontrar leis universais que rejam as pessoas, os grupos e a sociedade como um todo. Aqui, faz-se mister explicar que a ciência positivista de Comte e, consequentemente de Durkheim, possuem seu valor enquanto busca por uma explicação racional para os fenômenos que nos tocam, porém, a mesma não consegue explicar todas as exceções. A lacuna do positivismo, como mostra Minayo em seu livro “O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde” citando Wright Mills é que a falta de interpretação dos fatos ou processos que não possam ser verificados por dados matemáticos, por exemplo, configura uma “subserviência ao poder” (Minayo, 2007, p.90). Ainda para Mills, “a utilidade das ciências sociais seria dada pela sua capacidade de transformar os grandes problemas vividos pelo povo em questões públicas, em favor de mudanças sociais, tornando os cidadãos capazes de saírem de seus limites individuais e se sentirem parte de uma história à qual sua biografia está estreitamente vinculada” (idem).

Assim sendo, como resolver a exceção de uma resposta oferecida por um teste? Para Lourenço Filho, não há exceção porque o teste é objetivo. Para Leite, a exceção mostra a falha do resultado.

Os testes vocacionais ou de interesse também foram observados por Dante Moreira Leite. As famosas baterias de testes a fim de predizer em qual área aquela pessoa obterá mais êxito na vida prática segundo seus interesses e aptidões também podem não oferecer resultados tão fidedignos à realidade. Primeiro, porque “as aptidões não podem ser vistas como aspectos isolados de outras características da pessoa, pois estas determinam a forma de utilização ou expressão das capacidades” (Leite, 2008, p.54). Em segundo lugar, porque identificar os interesses do candidato em um teste baseado nas semelhanças referentes às características de atividades profissionais pode não dar o resultado esperado, pois se generalizam categorias onde é possível encontrar sempre especificidades que esses exames não contemplam. Como exemplo, o pesquisador imagina como seria o desenlace de um teste realizado por Freud com o intuito de descobrir sua vocação e sua futura profissão. A pergunta é: seria ele aceito? Talvez não, pois possivelmente fosse diferente dos demais psiquiatras de sua época (idem, p.57). Porém, essa diferença é que foi fundamental para a renovação da ciência, lembrando que, muitos dos nossos “gênios” ou “inventores” tiveram uma formação diferente daquela com a qual se tornaram profissionalmente reconhecidos.

Podemos tomar a deficiência, um dos tópicos analisados por Leite, como referencial para desconstrução do que se pode observar. A deficiência é uma construção sócio-histórica. Claro que há distinções entre deficiências físicas e mentais e no olhar dirigido a cada uma delas. “Se os cegos foram identificados, desde os tempos mais remotos, isto se deve ao fato de que essa diferença orgânica gerou conseqüências na relação que esses indivíduos mantinham com o meio, impossibilitando-os de se constituírem como seres normativos, isto é, essa diferença se constituiu, pela relação exigências do meio (...). Assim, na pré-história, na medida em que as condições de vida do homem o colocavam muito próximos do plano da animalidade, as conseqüências da cegueira se relacionavam com as possibilidades de sobrevivência física e, por isso mesmo, foram identificadas” (Bueno, 2006, p.167)

A deficiência mental, para Leite, poderá ser melhor ou pior desenvolvida segundo seu entorno social. É a possibilidade efetiva de interagir com o outro que dará a direção de um melhor aproveitamento da apreensão do conhecimento ou não. E aqui as teorias vigostkianas sobre a experiência compartilhada, a importância do Outro como fator constitutivo do ser fazem total diferença na abordagem desenvolvimentista para se observar avanços ou não no comportamento e aprendizado de um deficiente mental, por exemplo.

Ou seja, enquanto Lourenço Filho faz do resultado obtido em laboratório a razão da diferença entre as pessoas, classificando-as, Leite usa a diferença para explicar a não-naturalidade do conceito com a qual a diferença esta sendo usada para reverberar suas intenções, isto é, sua falsa perspectiva da verdade, os estereótipos e as ideologias e, consequentemente, a dita ciência e seus respectivos discursos.

Lourenço Filho usa a diferença obtida em um teste como principio para determinado prognóstico, conceituando o aluno como “fraco, médio e forte”. Leite expõe o quão imprecisa pode ser uma medição quando constata que “a distância entre a simulação e a situação futura pode ser maior ou menor, mas a medida só é valida se puder predizer o comportamento futuro em situação semelhante” (p.358). Ou seja, só podemos ter uma resposta idêntica no futuro se as condições forem exatamente iguais, tanto no teste quanto na condição a ser apresentada. E isso, até o momento presente de nossa vivência, não existe. Além disso, uma medição feita em um determinado momento histórico (por exemplo, hoje) não prediz as condições sócio-históricas futuras com as quais o individuo estará envolvido (daqui três meses, suponhamos).

Tanto Lourenço Filho quanto Dante Moreira Leite utilizam a diferença como meio para suas pesquisas, porém, cada um, a sua maneira, oferece resultados diferentes, principalmente, porque Leite vê a diferença como uma construção histórica da sociedade e , Filho a vê como algo inerente ao ser humano, um inatismo premente.

É importante ressaltar que a utilização das medidas já havia sido criticada no final do século XIX, pois “sustentava-se que as medidas só têm sentido quando se referem a entidades físicas e que as características psicológicas não são redutíveis a quantidades” (Leite, 2008, p.21). Além disso, os testes poderiam não oferecer uma resposta verdadeira, pois os indivíduos examinados poderiam recusar, mentir ou omitir uma informação.

Ao que indicamos no decorrer deste texto, a utilização dos testes como forma de mensuração torna-se muitas vezes um paradoxo.

Muitas são as concepções a respeito de paradoxo. Joan Scott menciona que paradoxo, na lógica, “é uma proposição que não pode ser resolvida e que é falsa e verdadeira ao mesmo tempo. (...) Na Retórica e na Estética, paradoxo é um signo da capacidade de equilibrar, de forma complexa, pensamentos e sentimentos contrários, e, assim, a criatividade poética. O uso comum emprega “paradoxo” para designar uma opinião que desafia a ortodoxia prevalente, que é contraria a opiniões preconcebidas”” (Scott, 2005, p.14). Assim, o uso dos testes é um paradoxo à medida em que não reflete as singularidades e os potenciais que o individuo possui face às interações que ele dispõe em seu universo, porém, ao mesmo tempo, sabe-se hoje, que avanços no campo da saúde e da educação só puderam ser observados por conta da utilização de aferições, principalmente, na área das neurociências onde os testes são um dos meios de diagnóstico para a descoberta de desvios de padrão na atenção e memória, como é o caso do TDAH- Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Pesquisas quantitativas como o QI, por exemplo, são válidas desde que se observem quais os objetivos para tal empreitada. Um teste, uma prova, um exame só tem alguma validade se o mesmo não é utilizado para se provar que um ser humano é melhor que o outro devido a essa determinada especificidade. Observou-se que o teste contribui muito mais para que indivíduos fossem estigmatizados e, consequentemente, tivessem menos oportunidades futuras, que um possível auxilio – independente da natureza da ajuda – para equalizar seu desempenho frente aos seus pares. O resultado do teste possibilitou, infelizmente, que se criassem maiores abismos entre o que pode ser desenvolvido e o que de fato é propiciado ao desenvolvimento daquele individuo. Os testes não ofereceram oportunidades iguais nem tampouco condições equitativas para a melhoria da qualidade do desenvolvimento cognitivo do ser humano, até o momento. Criaram-se mais aberrações que considerações e particularizações. A homogeneização proclamada com os testes ABC não fizeram com que o sonho dourado da pedagogia fosse uma realidade, porque, voltamos a dizer, o ser humano se constitui muito além dos muros da escola.

Por isso, a aferição em torno da pessoa, seja ele criança, adolescente ou adulto, deve ser embasada também em seu contexto ambiental, em seu ecossistema. Pois, os estudos de Leite nos mostram que inúmeras situações de (a)normalidade não nos são dadas por uma condição inata a priori, mas sim, pelo seu contexto e construção sócio-histórica.

Diante disso, é possível afirmar a efemeridade dos resultados de testes, assim como o cuidado com que os profissionais da área da educação e saúde, utilitários ou não de testes de medição de qualquer natureza, devem ter com esses possíveis diagnósticos. Uma boa predição envolve muito mais que um simples resultado realizado em laboratório porque a vida em si contém uma infinidade de possibilidades com as quais nenhum deles foi e é capaz de prognosticar. Finalizando: deus pode até jogar dados, mas a experiência humana não[4].

Referências bibliográficas:

-BUENO, José G.S. A produção social da identidade do anormal. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História Social da Infância no Brasil. 6ª.edição. São Paulo: Cortez, 2006.

- FREITAS, Marcos Cezar. Da idéia de estudar a criança no pensamento social brasileiro: a contraface de um paradigma. In: FREITAS, Marcos Cezar; KUHLMANN JR., Moyses (orgs). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002.

- GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª.edição. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

- HAWKING, Stephen. “Does God play dice?”. Disponível em http://www.hawking.org.uk/index.php/lectures/publiclectures/64. Acesso em 16 de novembro de 2009.

- LEITE, Dante Moreira. Psicologia diferencial e estudos em educação. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

- MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10ª. Edição. São Paulo: Editora Hucitec, 2007.

- MONARCHA, Carlos. Arquitetura escolar republicana: a escola normal da praça e a construção de uma imagem de criança. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História social da infância no Brasil. 6ª.edição. São Paulo: Cortez, 2006.

- ____________. Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação (São Paulo, 1922-1933). Brasília: INEP/MEC, 2001.

- ____________. O triunfo da razão psicotécnica: medida humana e equidade social. In: STEPHANOU, M; BASTOS, M.H. História e memórias da educação no Brasil, Vol. III: século XX. Petrópolis, Rj: Vozes, 2005.

- SANTOS, Milton. Pensando o espaço do Homem. 5ª. Edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

- SCOTT, Joan W. O enigma da igualdade. In: Estudos Feministas, Florianópolis, janeiro-abril/2005, p.11-30.



[1] Grifos nossos.

[2] Leite aceita as diferenças de aprendizagem provenientes de uma deficiência mental ou física, como o caso de cegos. Para tanto, o autor dedica um capítulo de seu livro aos deficientes, porém , ele observa como o meio social direciona significativamente para o desenvolvimento do individuo.

[3] Teoria criada por Francis Galton. Uma de suas principais teses era a de que o gênio fosse herdado.

[4] Parafraseando a frase “Deus não joga dados” de Albert Eisntein. Importante observar que o Principio da Incerteza de Heisemberg nos diz que não se pode conhecer ao mesmo tempo a posição e a velocidade de partículas, de forma acurada. E que a frase de Einstein ainda contém um certo determinismo oriundo de Laplace. Para mais informações sobre a arbitrariedade do futuro e suas relações com a física, ver: “Does God play Dice?”, de Stephen Hawking em: http://www.hawking.org.uk/index.php/lectures/publiclectures/64

opus canto desabafo - sinfonia No. 01 para os ex.


Sou sempre a mesma/ Aqui e lá/ E ao mesmo tempo diferente de todas as outras marioskas/ Os cabelos têm caído / A mesma força e não mais a mesma/ Outrora muito rude muito carranca/muito plus/ Por falta de dor/O tempo trouxe todas / Ao mesmo tempo/ Santificada seja o teu nome/ a dor / a dor a/ adorar/ Somente as musicas entre eu e você/ É que restaram/ E todos podem ouvir ao mesmo tempo/ agora/ Mas são as músicas estórias olhares/ Apenas som que houve entre eu e você/ A cumplicidade permanece mesmo com o tempo/ E as peles de pêssego se renovam/ De outros meios em outros/ Instantes/ A dor da partida é sempre uma dor/ Duída/ Da mudança de hábitos / Ver partir um amor é desfazer-se/ Entre tantas opções é/ Trocar de hábitos/ Sim ou sim/ Não mais aquele telefonema, não mais aquela expectativa/ Porém eu sou a mesma e nova/ Em tantas novas utopias/ Saber se se sucumbe ou se se sobrevive é o desafio/ A entrega ao novo é é dolorosa do bebê à morte/ tem-se que tirar a pele de algum lugar/ abrir uma janela que estava fechada/ ou fechar uma porta definitivamente/ a dor será na medida do pé e do sapato. As circunstâncias serão sempre novas. Não me lembro de ter estado aqui antes. Neste planeta.

meninos eu vi

"vi oswald de andrade
o pai antropófago em 49
reclinado numa cadeira de balanço
lendo o trópico de câncer de henry miller
(a rosa dos alkmin maria antonieta o mimava
enquanto ele ia esmagando com o martelo de nietzsche
contumazes cabeças de diamante)

vi ezra pound em 50
na via mameli em rapallo
(tuesday four pm ore sedici)
erguendo nas mãos o gato de gaudier-brzeska
uma forma felina que ocupava todo o espaço
de um exíguo pedaço de mármore cinza
(por essa altura o velho ez já começara a calar-se
e os olhos ruivos faiscavam na inútil
procura de punti-luminosi)

vi roman jakobson en la jolla
califórnia ano 66
(a seu lado krystina pomorska loura cabeça altiva)
passei rápido pelo teste das palavras trocadas:
v zviózdi vriézivaias ;/ 'entremeado às estrelas"
buraco negro na primeira estrofe
do poema de maiakóvski a sierguêi iessiênin
(venha ouvir krystina un poeta brasileiro
que resolveu o problema da rima às avessas
na tradução dos versos de vladimir)

convidou-me então a comer comida árabe
e foram muitas as vezes e os lugares em que nos revimos
encontros marcados por luminosas doses de vodka
(albo lapide notari - diziam os romanos)
e até mesmo uma carta
aberta
depois de ter lido as coplas de martin codax
sobre o mar de vigo


(...)

vi julio cortázar anos mais tarde
em paris rue de l´éperon
chamou-me cronópio como fazia
aos amigos
(ele cronopíssimo o maior de todos):
costumávamos comer num restaurante grego
perto do hotel du levant
na harpejante rue de la harpe
e um dia me fez entrar num de seus contos
onde me pus a transcrever de trás pra diante em língua morta
um seu soneto corrediço feito um zipper
(depois descreveu-me como um cachalote de barbas de netuno
no centro extremoso do círculo
dos seus amigos brasileiros)

vi tudo isso e vi muitas outras coisas
como por exemplo na via del consolato
murilo mendes entre quadros de volpi
perguntando pela idade do serrote
e nessa mesma roma de fachadas amarelo-ovo
na trattoria del buco
ungaretti o leonardo ungaretti
(que costumava praticar com leopardi
no locutório das estrelas)
indagou-me uma vez em tom de confidência:
ci sono ancora quelle mulattine a san paolo?
(não havia mulatinha nenhuma- era só
explicou-me depois o paulo emílio -
a fantasia turbinosa do poeta)

mas vi tudo isso
tudo isso e mais aquilo
e tenho agora direito a uma certa ciência
e a uma certa impaciência
por isso nãome mandem manuscritos datiloscritos telescritos
porque sei que a filosofia não é para os jovens
e a poesia (para mim) vai ficando cada vez mais parecida
com a filosofia
e já que tudo afinal é névoa-nada
e o meu tempo (consideremos) pode ser pouco
e só consegui traduzir até agora uns duzentos e setenta versos
do primeiro capítulo da Ilíada
a há ainda a vontade mal-contida
de aprender árabe e iorubá
e a necessidade de reunir todas as forças disponíveis
para resistira mefisto e não vender a alma
e ficar firme
em posição de lótus
enmquanto todos esses recados ambíguos (digo: vida)
caem na secretária eletrônica"

Haroldo de Campos - Crisantempo: no espaço curvo nasce um