sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Finados

Ah, a morte.
Tenho que fazer minhas reverências a ela e aos que já se foram.

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"Porque a desesperança, a terrível nulidade da revolta aqui descrita, já nada tem em comum com a marca de Caim, com o movimento de fuga que se poderia encontrar no início. Não, aqui os nossos critérios e as nossas explicações não valem nada, aqui temos apenas alguém que chegou ao fim das suas forças...
(...) Não, nenhum falseamento poderá libertar-me do meu fardo e aliviar o leitor. O perigo não é compreensível, o medo não tem nome - é isso que o torna tenebroso. E há caminhos tão terríveis que deles já não podemos voltar.

Se assim não fosse, porquê morrer?

A morte não é para nós natural, deixa-nos perplexos. Mas os asiáticos incluíram-na mas suas religiões como o nada, o verdadeiro ser, a verdadeira força. Aguardam a morte sem ansiedade - já a nossa vida não é concebível sem esta ansiedade, que é o seu verdadeiro elemento. Arrancados à nossa esfera, arrancados às nossas formas familiares de consolo (um rosto que respira, um coração que bate, os cambiantes de uma paisagem amena), temos por fim de nos abandonar aos ventos fortes da montanha, que rasgam e deixam farrapos as nossas últimas esperanças. Para onde nos voltaremos? À nossa volta, aridez apenas, cordilheiras cinzentas de basalto, desertos amarelos cor de lepra, vales lunares sem vida, ribeiros de greda e rios de prata, onde bóiam peixes mortos. Para onde? Ah, a perplexidade, asas cortadas da alma! Na Ásia, não temos sequer consciência da sucessão dos dias e das noites, mesmo que o dia seja luminoso e sem sobra, mesmo que a noite seja alumiada por estrelas frias.

Por vezes podemos agarrar-nos ainda à dor, à amargura da saudade e do arrependimento, mas nesse caso já não vemos a nossa própria culpa, pensamos em vão no princípio ("O que foi que me conduziu até aqui?"). Poder acusar mais uma vez, poder confiar mais uma vez, poder amar mais uma vez! Caímos então na ilusão, grande como o mar, temos fé e rezamos, e quando olhamos para o rosto amado, esquecemos o medo escuro. Mas como podemos nós proteger-nos do medo?

Ah, despertar mais uma vez sem sentir as suas garras, por uma vez não ficar só e entregue ao medo! Sentir a respiração feliz do mundo!

Ah, viver mais uma vez!"


*
"Morte na Pérsia" é um livro de Annemarie Schwarzenbach, viajante incansável e repórter em plena 2a. Guerra Mundial. Nascida em Zurique em 1908, Anne (para nós, íntimos) casou-se com um diplomata, era dependente de morfina e tinha uma identidade sexual em confronto com o seu tempo e com as normas sociais vigentes. Aos 34 anos, caiu da bicicleta, bateu a cabeça e morreu nove semanas depois.)








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