segunda-feira, 7 de março de 2011

meninos eu vi

"vi oswald de andrade
o pai antropófago em 49
reclinado numa cadeira de balanço
lendo o trópico de câncer de henry miller
(a rosa dos alkmin maria antonieta o mimava
enquanto ele ia esmagando com o martelo de nietzsche
contumazes cabeças de diamante)

vi ezra pound em 50
na via mameli em rapallo
(tuesday four pm ore sedici)
erguendo nas mãos o gato de gaudier-brzeska
uma forma felina que ocupava todo o espaço
de um exíguo pedaço de mármore cinza
(por essa altura o velho ez já começara a calar-se
e os olhos ruivos faiscavam na inútil
procura de punti-luminosi)

vi roman jakobson en la jolla
califórnia ano 66
(a seu lado krystina pomorska loura cabeça altiva)
passei rápido pelo teste das palavras trocadas:
v zviózdi vriézivaias ;/ 'entremeado às estrelas"
buraco negro na primeira estrofe
do poema de maiakóvski a sierguêi iessiênin
(venha ouvir krystina un poeta brasileiro
que resolveu o problema da rima às avessas
na tradução dos versos de vladimir)

convidou-me então a comer comida árabe
e foram muitas as vezes e os lugares em que nos revimos
encontros marcados por luminosas doses de vodka
(albo lapide notari - diziam os romanos)
e até mesmo uma carta
aberta
depois de ter lido as coplas de martin codax
sobre o mar de vigo


(...)

vi julio cortázar anos mais tarde
em paris rue de l´éperon
chamou-me cronópio como fazia
aos amigos
(ele cronopíssimo o maior de todos):
costumávamos comer num restaurante grego
perto do hotel du levant
na harpejante rue de la harpe
e um dia me fez entrar num de seus contos
onde me pus a transcrever de trás pra diante em língua morta
um seu soneto corrediço feito um zipper
(depois descreveu-me como um cachalote de barbas de netuno
no centro extremoso do círculo
dos seus amigos brasileiros)

vi tudo isso e vi muitas outras coisas
como por exemplo na via del consolato
murilo mendes entre quadros de volpi
perguntando pela idade do serrote
e nessa mesma roma de fachadas amarelo-ovo
na trattoria del buco
ungaretti o leonardo ungaretti
(que costumava praticar com leopardi
no locutório das estrelas)
indagou-me uma vez em tom de confidência:
ci sono ancora quelle mulattine a san paolo?
(não havia mulatinha nenhuma- era só
explicou-me depois o paulo emílio -
a fantasia turbinosa do poeta)

mas vi tudo isso
tudo isso e mais aquilo
e tenho agora direito a uma certa ciência
e a uma certa impaciência
por isso nãome mandem manuscritos datiloscritos telescritos
porque sei que a filosofia não é para os jovens
e a poesia (para mim) vai ficando cada vez mais parecida
com a filosofia
e já que tudo afinal é névoa-nada
e o meu tempo (consideremos) pode ser pouco
e só consegui traduzir até agora uns duzentos e setenta versos
do primeiro capítulo da Ilíada
a há ainda a vontade mal-contida
de aprender árabe e iorubá
e a necessidade de reunir todas as forças disponíveis
para resistira mefisto e não vender a alma
e ficar firme
em posição de lótus
enmquanto todos esses recados ambíguos (digo: vida)
caem na secretária eletrônica"

Haroldo de Campos - Crisantempo: no espaço curvo nasce um

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