segunda-feira, 7 de março de 2011

Testar ou não testar: eis a questão! Uma análise crítica sobre a mensuração da inteligência

“Os fatos estão todos aí, objetivos e independentes de nós. Mas cabe a nós fazer com que se tornem fatos históricos, mediante a identificação das relações que os definem, seja pela observação de suas relações de causa e efeito, isto é, sua história, seja pela constatação da ordem segundo a qual eles se organizam para formar um sistema, um novo sistema temporal, ou melhor, um novo momento do modo de produção antigo, um modo de produção novo, ou a transição entre os dois. Sem relação não há “fatos”[1]. É por sua existência histórica, assim definida, no interior de uma estrutura social que se reconhecem as categorias da realidade e as categorias de análise. Já não estaremos, então, correndo o risco de confundir o presente com aquilo que não mais o é.” ( Milton Santos, 2004, p.15)

Desde que a filosofia surgiu no horizonte do pensamento humano, pergunta-se como se apreende o conhecimento e como se dá esse processo de apreensão. Dúvidas, questionamentos, técnicas de investigação da mente foram os pontapés iniciais de nossos antepassados para que hoje, ainda, continuássemos a investigar se é possível (ou não) ter um modelo ideal de como se constitui o ser humano, em termos de conhecimento adquirido ou inato.

Grosso modo, a essa capacidade de processamento e aprendizado de novas informações de forma reflexiva com as quais se pode resolver problemas dá-se o nome de inteligência. Faculdade esta que nos possibilita manuseá-la – e metainlectualizá-la - com vistas a compreendê-la e a eliminar as dúvidas que ainda persistem há séculos.

Nos últimos trezentos anos, as interrogativas a respeito da racionalidade (e por quê não dizer também da inteligência?) cresceram, sendo que no final do século XIX, inicio do século XX com o advento e formalização da psicologia, critérios formais de averiguação foram sendo criados para determinar se a inteligência seria também um conjunto de funções inatas ou adquiridas.

Com o intuito de aferir a capacidade intelectual dos indivíduos, pesquisas e testes de medição da inteligência foram sendo modelados concomitantemente à investigação cientifica e conceitual das disciplinas “psicologia” e “pedagogia”.

O primeiro teste formal de inteligência foi criado em 1905 por Alfred Binet e Theodore Simon. Predominantemente verbal, o teste visa(va) obter o Quoficiente de Inteligência – QI- e foi elaborado de modo a obedecer uma sequência lógica de dificuldades a fim de descobrir a idade mental do individuo. Francis Galton, Cyril Lodovic Burt e Hans Jurgen Eysenck são alguns dos pesquisadores dos mais comentados quando se trata de pesquisar o histórico, os porquês e a qualidade dos exames de medição da capacidade intelectual do ser humano.

É nesse caldeirão efervescente de novas possibilidades cientificas que, estudiosos brasileiros começam a procurar meios de entender como propiciar, favorecer e melhorar o desenvolvimento da aprendizagem e, consequentemente, da estrutura pedagógica na área da educação, principalmente, junto às crianças.

Professor, pesquisador e criador dos Testes ABC, Manoel Bergström Lourenço Filho, mais conhecido pelos seus dois últimos sobrenomes, foi um dos intelectuais com carreira ascendente em nosso país que mais contribuíram significativamente para a disseminação de testes assim como contribuições à chamada psicologia experimental.

Lourenço Filho fazia contraponto às idéias antropométricas, principalmente àquelas de viés lombrosiano. Para ele, “a medida psicológica devia ser rapidamente e em condições simples, por meio de testes que permitissem a verificação do valor individual, para posterior classificação dos escolares” (Monarcha, 2001, p.13).

O contexto sócio-histórico da qual Lourenço Filho fazia parte era propício aos estudos da educação e sua conseqüente racionalização: havia pouco tempo que a República fora promulgada e a nova ordem político-social previa educação a todos. “Tomados pela paixão de uma sociedade reconduzida ao seu começo primordial, esses sujeitos históricos idealizam a instrução como condição prévia para o bom funcionamento das instituições republicanas, fundadoras de um corpo político duradouro e de um pacto social estável” (Monarcha, 2006, p.123).

Porém, que educação era a que os republicanos mencionavam? Como dar escola a todos se, de fato, as crianças não são tão iguais quanto se pensava que fossem? Que modelo escolar era preciso para cumprir o ideal republicano? É em face desses questionamentos que, Lourenço Filho irá desenvolver suas pesquisas.

É a partir de meados da década de 20 que os testes de medição começam a ser utilizados em larga escala em muitos Estados brasileiros e publicações de intelectuais surgem. Bahia, Pernambuco, Distrito Federal, Minas Gerais, Ceará, São Paulo assumem laboratórios de psicologia.

Com foco no melhoramento do diagnóstico e predição, utilizando questionários com perguntas breves e objetivas, o “movimento dos testes” (idem, p.15) propunha-se ser um método universal que pudesse ter a qualidade e a característica de ser utilizado em larga escala para os mais diversos fins. Como iremos observar, além do esclarecimento do rendimento individual e da realidade escolar, os testes de medição de inteligência e rendimento também serão aplicados ao trabalho, como método de controle social.

Sob essa perspectiva de se organizar a sociedade de forma eficaz – diga-se de passagem, a eficiência também fazia parte do ideal republicano -, devido ao crescimento das zonas urbanas e do crescimento, Lourenço Filho junto a Roberto Mange iniciam um trabalho de difusão da psicotecnia, ou seja, uma psicologia aplicada que favorecesse a seleção, orientação e formação profissional de trabalhadores brasileiros estáveis (idem, p.21).

Segundo o próprio Lourenço Filho, o teste “antes de tudo, pretende é substituir a apreciação subjetiva, variável (...) por uma avaliação objetiva, constante e inequívoca. O teste pretende ser, realmente, uma medida. Medir pressupõe um padrão, uma grandeza conhecida, certa e determinada, invariável no tempo e no espaço, que se aplica sobre grandezas desconhecidas” (Lourenço Filho, 1931, p.255 apud Monarcha, 2001, p.28).

Importante salientar que a república estava impregnada do cientificismo e de temas como raça, sanitarismo e higiene. “Mensurar as capacidades, sanear e dar argumentos científicos às hierarquizações da sociedade eram gestos intelectuais conexos diante de uma República permanentemente atacada como incompleta e considerada abaixo das expectativas de todos os republicanos” (Freitas, 2002, p.352). Ou como menciona Monarcha, “naquele momento histórico, sob o influxo triunfante da razão psicotécnica, parcelas crescentes de especialistas colocaram para si o problema da desigualdade humana e da equidade social, explicando ambas por meio da medida, considerada um instrumento universal e não-arbitrário” (Monarcha, 2005, p.140).

Portanto, a racionalização da educação exigia, por sua vez, uma economia pedagógica eficiente. Ou seja, esse novo modus operandi onde professores estão na escola (no mesmo local), o ensino é simultâneo aos alunos, a idade e a seriação tem correspondência e há um método específico de disseminar o conhecimento, para ser efetivo, necessita a contraparte do aluno, isto é, se esse individuo é capaz ou não de aprender. A economia escolar exigia uma homogeneidade discente para o progresso da aprendizagem.

E é aqui que, os Testes ABC criados por Lourenço Filho obterão o reconhecimento por tentarem resolver a lacuna-e-dilema entre maturidade, capacidade e oferecimento de conhecimento e de ciência.

Os Testes ABC eram constituídos por oito provas que objetivavam perceber a coordenação visivo-motora, memória imediata, memória motora, memória auditiva, memória lógica, pronunciação, atenção e fatigabilidade. Por meio de seus resultados, Lourenço Filho e seus colaboradores podiam quantificar e, também, qualificar os alunos em fortes, médios e fracos.

Monarcha apresenta que os “Testes ABC visavam à organização eficiente, mediante analise psicológica, com a conseqüente eliminação das classes heterogêneas formada por uma variedade de tipos mentais” (idem, p.31). Ou seja, essa mensuração dirigia-se à produtividade no ensino e ganha mais força quando a educação massiva se faz presente e o trabalho nas zonas urbanas cresce. A psicologia objetiva é legitimada como forma de organização e controle social.

Digno de nota é informar que, Lourenço Filho na condição de diretor-geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo, em 1930, cria seções especializadas com foco na sistematização pedagógica como a inspeção médica escolar, biblioteca central, museu da criança, inspeção escolar e serviço de assistência técnica. Todos esses marcadores institucionais em conjunto com os Testes ABC começam a ser utilizados em larga escala, tornando-se uma prática corrente e institucional.

Essa nova estrutura pedagógica fará com que a aferição como meio de situar o aluno no seu momento de aprendizado torne-se referência e reverbere ainda hoje nas praticas de aprendizagem e de ensino. Os vestibulares para ingresso nas universidades é uma herança que persiste.

Por conta disso e, contrastando com o que a psicologia objetiva apregoava, Dante Moreira Leite, filósofo e cientista social, faz um minucioso levantamento das ditas “diferenças” que acometem os seres humanos, desmistificando os resultados provenientes de testes que levam em consideração a raça, o grupo, as deficiências, os normais e anormais e até mesmo os chamados bem-dotados (super dotados?). Seu método de analise toma como ponto de partida os aspectos do tempo social da diferença, o entorno político-social, sua respectiva influência[2], considerando que se existem deficiências biológicas, ainda assim os testes de medição poderiam predizer o futuro do desenvolvimento do individuo?

Com o advento e formalização desse novo padrão de abordagem frente às diferenças individuais na aprendizagem lançado no passado por Lourenço Filho, Leite investiga até que ponto os testes de medição de inteligência podem de fato ofertar subsídios que contribuam para o desenvolvimento do individuo em seu processo de apreensão do conhecimento. Leite apresenta a psicologia diferencial como a psicologia que “procura verificar e explicar as diferenças psicológicas entre indivíduos e grupos” (Leite, 2008, p.15). Psicologia essa se utilizará de testes para a observação das respectivas diferenças entre pessoas e grupos, por exemplo.

O cientista social aprofunda, com uma linguagem clara e acessível, o cuidado minucioso de situar a diferença em si e a sua circunstância, o seu respectivo momento histórico.

Para ele, a observação dessas diferenças, a quase naturalidade com que essas se incorporam aos preconceitos tornando-se um estigma, que cada vez é “mais aplicado à própria desgraça” (Goffman, 2008, p.11), é um dos desastres que uma diferença ao se corporificar, vai se representando nos interstícios da sociedade. É a possibilidade de “esmiuçamento” e atenção às diferenças que poderiam ser consideradas naturais o foco dos estudos de Leite e, que, se oporá à chamada psicologia objetiva de Lourenço Filho e, consequentemente, da psicologia diferencial que baseia sua atuação em testes.

A psicologia diferencial e/ou a psicologia objetiva fazem da diferença seu foco. A questão é que esta diferenciação não responde aos problemas e dilemas de desenvolvimento que nos perpassam enquanto cidadãos, estudantes, filhos, pais ou mãe, isto, seja lá qual for o papel social desempenhado.

Pois, a exacerbação dos ditames diferenciais foi o que levou pessoas e até mesmo pesquisadores darem crédito à eugenia[3] e, até mesmo que se pudesse pensar que determinado grupo está destinado a dominar e, outro, a ser dominado como foi o caso dos judeus perseguidos com a ascensão do nazismo, por exemplo.

No caso da medição da inteligência e as diferenças entre as pessoas há questões muito bem observadas por Leite: a noção de rapidez (será que quanto mais rápido é mais inteligente?); a subjetividade do professor na avaliação do aluno e as dificuldades para aferirem o conhecimento; os problemas-chave das provas dissertativas ou objetivas como forma de avaliação; os resultados do vestibular e a relação com a escolha e sucesso na carreira – diga-se de passagem, o autor aprofunda muito bem a questão do êxito na vida prática, a correlação mediana entre notas na escola e testes de inteligência, a escolha vocacional e o problema da orientação na identificação dos interesses do individuo -; a normalidade; as construções históricas sobre as doenças; a superação da deficiência e a participação ativa (ou não) do meio ambiente; a pseudo eficácia da medição da criatividade; o papel da cultura nos grupos e, até os (pré)conceitos generalistas referentes a gênero e idade como alguns dos itens comentados no decorrer do seu estudo.

Referente ao teste de inteligência, Leite problematiza, discernindo a veracidade do resultado que o teste pode oferecer.

A primeira contenda com a qual este autor se depara é que seja lá qual for o resultado do teste, o produto dessa operação só poderá ser utilizado junto ao grupo com a qual ele foi obtido. Não há como o resultado do teste ou do ser exame poder ser realocado em uma população diferente da qual ele foi empregado anteriormente. As pessoas vivem em circunstâncias de vida diversas e, sendo assim, o teste não tem um resultado universal, como se previa.

Dizer que um resultado é universal é ainda olhar a ciência sob o aspecto do positivismo. É continuar olhando os dados com fins a se encontrar leis universais que rejam as pessoas, os grupos e a sociedade como um todo. Aqui, faz-se mister explicar que a ciência positivista de Comte e, consequentemente de Durkheim, possuem seu valor enquanto busca por uma explicação racional para os fenômenos que nos tocam, porém, a mesma não consegue explicar todas as exceções. A lacuna do positivismo, como mostra Minayo em seu livro “O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde” citando Wright Mills é que a falta de interpretação dos fatos ou processos que não possam ser verificados por dados matemáticos, por exemplo, configura uma “subserviência ao poder” (Minayo, 2007, p.90). Ainda para Mills, “a utilidade das ciências sociais seria dada pela sua capacidade de transformar os grandes problemas vividos pelo povo em questões públicas, em favor de mudanças sociais, tornando os cidadãos capazes de saírem de seus limites individuais e se sentirem parte de uma história à qual sua biografia está estreitamente vinculada” (idem).

Assim sendo, como resolver a exceção de uma resposta oferecida por um teste? Para Lourenço Filho, não há exceção porque o teste é objetivo. Para Leite, a exceção mostra a falha do resultado.

Os testes vocacionais ou de interesse também foram observados por Dante Moreira Leite. As famosas baterias de testes a fim de predizer em qual área aquela pessoa obterá mais êxito na vida prática segundo seus interesses e aptidões também podem não oferecer resultados tão fidedignos à realidade. Primeiro, porque “as aptidões não podem ser vistas como aspectos isolados de outras características da pessoa, pois estas determinam a forma de utilização ou expressão das capacidades” (Leite, 2008, p.54). Em segundo lugar, porque identificar os interesses do candidato em um teste baseado nas semelhanças referentes às características de atividades profissionais pode não dar o resultado esperado, pois se generalizam categorias onde é possível encontrar sempre especificidades que esses exames não contemplam. Como exemplo, o pesquisador imagina como seria o desenlace de um teste realizado por Freud com o intuito de descobrir sua vocação e sua futura profissão. A pergunta é: seria ele aceito? Talvez não, pois possivelmente fosse diferente dos demais psiquiatras de sua época (idem, p.57). Porém, essa diferença é que foi fundamental para a renovação da ciência, lembrando que, muitos dos nossos “gênios” ou “inventores” tiveram uma formação diferente daquela com a qual se tornaram profissionalmente reconhecidos.

Podemos tomar a deficiência, um dos tópicos analisados por Leite, como referencial para desconstrução do que se pode observar. A deficiência é uma construção sócio-histórica. Claro que há distinções entre deficiências físicas e mentais e no olhar dirigido a cada uma delas. “Se os cegos foram identificados, desde os tempos mais remotos, isto se deve ao fato de que essa diferença orgânica gerou conseqüências na relação que esses indivíduos mantinham com o meio, impossibilitando-os de se constituírem como seres normativos, isto é, essa diferença se constituiu, pela relação exigências do meio (...). Assim, na pré-história, na medida em que as condições de vida do homem o colocavam muito próximos do plano da animalidade, as conseqüências da cegueira se relacionavam com as possibilidades de sobrevivência física e, por isso mesmo, foram identificadas” (Bueno, 2006, p.167)

A deficiência mental, para Leite, poderá ser melhor ou pior desenvolvida segundo seu entorno social. É a possibilidade efetiva de interagir com o outro que dará a direção de um melhor aproveitamento da apreensão do conhecimento ou não. E aqui as teorias vigostkianas sobre a experiência compartilhada, a importância do Outro como fator constitutivo do ser fazem total diferença na abordagem desenvolvimentista para se observar avanços ou não no comportamento e aprendizado de um deficiente mental, por exemplo.

Ou seja, enquanto Lourenço Filho faz do resultado obtido em laboratório a razão da diferença entre as pessoas, classificando-as, Leite usa a diferença para explicar a não-naturalidade do conceito com a qual a diferença esta sendo usada para reverberar suas intenções, isto é, sua falsa perspectiva da verdade, os estereótipos e as ideologias e, consequentemente, a dita ciência e seus respectivos discursos.

Lourenço Filho usa a diferença obtida em um teste como principio para determinado prognóstico, conceituando o aluno como “fraco, médio e forte”. Leite expõe o quão imprecisa pode ser uma medição quando constata que “a distância entre a simulação e a situação futura pode ser maior ou menor, mas a medida só é valida se puder predizer o comportamento futuro em situação semelhante” (p.358). Ou seja, só podemos ter uma resposta idêntica no futuro se as condições forem exatamente iguais, tanto no teste quanto na condição a ser apresentada. E isso, até o momento presente de nossa vivência, não existe. Além disso, uma medição feita em um determinado momento histórico (por exemplo, hoje) não prediz as condições sócio-históricas futuras com as quais o individuo estará envolvido (daqui três meses, suponhamos).

Tanto Lourenço Filho quanto Dante Moreira Leite utilizam a diferença como meio para suas pesquisas, porém, cada um, a sua maneira, oferece resultados diferentes, principalmente, porque Leite vê a diferença como uma construção histórica da sociedade e , Filho a vê como algo inerente ao ser humano, um inatismo premente.

É importante ressaltar que a utilização das medidas já havia sido criticada no final do século XIX, pois “sustentava-se que as medidas só têm sentido quando se referem a entidades físicas e que as características psicológicas não são redutíveis a quantidades” (Leite, 2008, p.21). Além disso, os testes poderiam não oferecer uma resposta verdadeira, pois os indivíduos examinados poderiam recusar, mentir ou omitir uma informação.

Ao que indicamos no decorrer deste texto, a utilização dos testes como forma de mensuração torna-se muitas vezes um paradoxo.

Muitas são as concepções a respeito de paradoxo. Joan Scott menciona que paradoxo, na lógica, “é uma proposição que não pode ser resolvida e que é falsa e verdadeira ao mesmo tempo. (...) Na Retórica e na Estética, paradoxo é um signo da capacidade de equilibrar, de forma complexa, pensamentos e sentimentos contrários, e, assim, a criatividade poética. O uso comum emprega “paradoxo” para designar uma opinião que desafia a ortodoxia prevalente, que é contraria a opiniões preconcebidas”” (Scott, 2005, p.14). Assim, o uso dos testes é um paradoxo à medida em que não reflete as singularidades e os potenciais que o individuo possui face às interações que ele dispõe em seu universo, porém, ao mesmo tempo, sabe-se hoje, que avanços no campo da saúde e da educação só puderam ser observados por conta da utilização de aferições, principalmente, na área das neurociências onde os testes são um dos meios de diagnóstico para a descoberta de desvios de padrão na atenção e memória, como é o caso do TDAH- Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Pesquisas quantitativas como o QI, por exemplo, são válidas desde que se observem quais os objetivos para tal empreitada. Um teste, uma prova, um exame só tem alguma validade se o mesmo não é utilizado para se provar que um ser humano é melhor que o outro devido a essa determinada especificidade. Observou-se que o teste contribui muito mais para que indivíduos fossem estigmatizados e, consequentemente, tivessem menos oportunidades futuras, que um possível auxilio – independente da natureza da ajuda – para equalizar seu desempenho frente aos seus pares. O resultado do teste possibilitou, infelizmente, que se criassem maiores abismos entre o que pode ser desenvolvido e o que de fato é propiciado ao desenvolvimento daquele individuo. Os testes não ofereceram oportunidades iguais nem tampouco condições equitativas para a melhoria da qualidade do desenvolvimento cognitivo do ser humano, até o momento. Criaram-se mais aberrações que considerações e particularizações. A homogeneização proclamada com os testes ABC não fizeram com que o sonho dourado da pedagogia fosse uma realidade, porque, voltamos a dizer, o ser humano se constitui muito além dos muros da escola.

Por isso, a aferição em torno da pessoa, seja ele criança, adolescente ou adulto, deve ser embasada também em seu contexto ambiental, em seu ecossistema. Pois, os estudos de Leite nos mostram que inúmeras situações de (a)normalidade não nos são dadas por uma condição inata a priori, mas sim, pelo seu contexto e construção sócio-histórica.

Diante disso, é possível afirmar a efemeridade dos resultados de testes, assim como o cuidado com que os profissionais da área da educação e saúde, utilitários ou não de testes de medição de qualquer natureza, devem ter com esses possíveis diagnósticos. Uma boa predição envolve muito mais que um simples resultado realizado em laboratório porque a vida em si contém uma infinidade de possibilidades com as quais nenhum deles foi e é capaz de prognosticar. Finalizando: deus pode até jogar dados, mas a experiência humana não[4].

Referências bibliográficas:

-BUENO, José G.S. A produção social da identidade do anormal. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História Social da Infância no Brasil. 6ª.edição. São Paulo: Cortez, 2006.

- FREITAS, Marcos Cezar. Da idéia de estudar a criança no pensamento social brasileiro: a contraface de um paradigma. In: FREITAS, Marcos Cezar; KUHLMANN JR., Moyses (orgs). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002.

- GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª.edição. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

- HAWKING, Stephen. “Does God play dice?”. Disponível em http://www.hawking.org.uk/index.php/lectures/publiclectures/64. Acesso em 16 de novembro de 2009.

- LEITE, Dante Moreira. Psicologia diferencial e estudos em educação. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

- MINAYO, Maria C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10ª. Edição. São Paulo: Editora Hucitec, 2007.

- MONARCHA, Carlos. Arquitetura escolar republicana: a escola normal da praça e a construção de uma imagem de criança. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História social da infância no Brasil. 6ª.edição. São Paulo: Cortez, 2006.

- ____________. Lourenço Filho e a organização da psicologia aplicada à educação (São Paulo, 1922-1933). Brasília: INEP/MEC, 2001.

- ____________. O triunfo da razão psicotécnica: medida humana e equidade social. In: STEPHANOU, M; BASTOS, M.H. História e memórias da educação no Brasil, Vol. III: século XX. Petrópolis, Rj: Vozes, 2005.

- SANTOS, Milton. Pensando o espaço do Homem. 5ª. Edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

- SCOTT, Joan W. O enigma da igualdade. In: Estudos Feministas, Florianópolis, janeiro-abril/2005, p.11-30.



[1] Grifos nossos.

[2] Leite aceita as diferenças de aprendizagem provenientes de uma deficiência mental ou física, como o caso de cegos. Para tanto, o autor dedica um capítulo de seu livro aos deficientes, porém , ele observa como o meio social direciona significativamente para o desenvolvimento do individuo.

[3] Teoria criada por Francis Galton. Uma de suas principais teses era a de que o gênio fosse herdado.

[4] Parafraseando a frase “Deus não joga dados” de Albert Eisntein. Importante observar que o Principio da Incerteza de Heisemberg nos diz que não se pode conhecer ao mesmo tempo a posição e a velocidade de partículas, de forma acurada. E que a frase de Einstein ainda contém um certo determinismo oriundo de Laplace. Para mais informações sobre a arbitrariedade do futuro e suas relações com a física, ver: “Does God play Dice?”, de Stephen Hawking em: http://www.hawking.org.uk/index.php/lectures/publiclectures/64

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